Aos sábados, as vielas e becos da favela do Real Parque, na
zona sul de São Paulo, se transformam em uma biblioteca a céu aberto. Por cada
cantinho, livros e mais livros vão ganhando espaço e despertando a atenção da
população. Todos ao redor estão interessados na contação de história.
Ayrton Vignola/AE-11/08/2010
Banca de livro. Crianças leem em uma biblioteca
abastecida com doações na favela Paraisópolis, zona sul de São Paulo
"O que fazemos é promover a leitura em situação de
crise", explica Márcia Lica. Ela é uma das sete fiandeiras, como são
chamadas essas contadoras de história que atuam também com os moradores da
favela Panorama, na mesma região da cidade.
Mais do que apenas uma experiência lúdica ou exercício
literário, o trabalho das fiandeiras é feito a partir da convicção de que a
literatura é capaz de ajudar as pessoas a se apropriarem de sua própria
trajetória - até mesmo em situações e momentos de crise.
E, no entendimento delas, as situações de crise não
acontecem só em momentos de risco social, como nas regiões onde a população
enfrenta conflitos armados ou pobreza extrema.
Ler um conto de fadas ao lado do leito de uma criança com
câncer ou organizar sessões de contação de histórias em uma comunidade rural
que perdeu suas tradições também é atuar em situação de crise.
"Há 15 anos, nos diziam que o problema das crianças era
a fome. Claro, elas precisam comer, mas também necessitam de cultura",
afirma a psicanalista Patricia Pereira Leite, diretora de A Cor da Letra,
organização não governamental que treina pessoas para atuar em projetos de
intervenção. "Hoje, após 15 anos, vejo outras ações se desenvolverem muito
criativamente nessa área", relata a diretora.
Extensivo
Para os especialistas, a literatura tem um poder de
disseminação singular e as crianças, muitas vezes, são a porta de entrada para
a reconstrução da história da família toda.
"Quando a criança lê para a mãe analfabeta, a tendência
é que essa mulher decida se alfabetizar. Ao mesmo tempo, compartilhar as
histórias com o filho faz com que essa mãe também se lembre de sua própria
história e consiga perceber seus valores de conduta. Reaviva coisas
adormecidas. Inicia-se, assim, uma nova cultura de transmissão", explica
Patrícia.
Essa reconstrução da história é o que acontece no trabalho
das fiandeiras. "Lemos um conto da Paraíba, por exemplo, e a pessoa se
reconhece. Daí, ela se lembra de coisas que viveu e conta a sua história",
diz Márcia.
Assim, uma leitura leve, mas não despretensiosa, pode se
tornar um marco na vida de alguém. Tanto que, dentre os adultos, as literaturas
de cordéis são as preferidas. "Ele reafirma sua identidade e aumenta a
autoestima", conclui Márcia.
Tradição
Em uma fazenda na região de Poços de Caldas (MG), onde vivem
cerca de 70 pessoas, a convicção de que a vida era cuidar de café e morar na
roça mudou desde que um centro cultural foi instalado, em 2000, e os
professores foram treinados para atuar na mediação da leitura.
O espaço, com um acervo de 1,8 mil livros, tem uma área
reservada para mães, que podem levar seus bebês para que tenham o primeiro
contato com a literatura. Há também espaço para os idosos que, ao participarem
da roda de prosa, conseguem perpetuar a tradição.
Os jovens, além de aprenderem sobre os hábitos dos
ancestrais, começaram a enxergar novas perspectivas com os encontros.
"Tinha gente que achava que literatura era só diversão. Mas, quando se
deram conta, estavam mudando suas vidas", conta Renato Donizetti de
Carvalho, educador cultural.
Ele diz que, antes do projeto, a maioria dos jovens não
tinha ensino fundamental completo. Hoje, muitos terminaram o ensino médio e
alguns ingressaram e estão cursando a faculdade. E estudar não significa ter um
passaporte para dizer adeus ao campo.
"Depois de formados, eles não querem sair da roça
porque há trabalho especializado aqui também. Precisamos de profissionais
gabaritados para o manuseio de máquinas e controle de qualidade do produto que
exportamos", diz Carvalho.
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