A ciência dirimiu todas as dúvidas quanto à relevância social da
educação na primeira infância - entre zero e seis anos. Falta agora os gestores
públicos acordarem para o tema, afirma Jack Schonkoff, do Centro para o
Desenvolvimento Infantil, de Harvard. O pesquisador americano reconhece a
dificuldade de convencer políticos a investir tempo e recursos em projetos que
só darão frutos quando já tiverem deixado o cargo. Ele veio a São Paulo no dia
20 para do Simpósio Internacional de Desenvolvimento da Primeira Infância,
organizado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e falou ao Estado sobre as
descobertas na área.
Qual é o
estado atual do conhecimento sobre educação na primeira infância?
Houve uma revolução. Durante décadas, observávamos claramente como uma família preocupada com a educação das crianças na primeira infância poderia exercer um poderoso estímulo no seu desenvolvimento. Também ficava patente que a exposição precoce a ambientes violentos têm um impacto muito negativo no processo formativo. Agora, começamos a entender como esses fatores de estímulo ou estresse influenciam a fisiologia da criança com menos de seis anos, especialmente o cérebro. Tal conhecimento ajuda muito na hora de pensar intervenções para diminuir o abismo que separa crianças que receberam uma educação adequada daquelas expostas a um ambiente ruim.
Que tipo de
intervenções são possíveis com este conhecimento?
Primordialmente, precisamos identificar qual é a situação da criança. Há muitas famílias pobres que dão uma excelente educação para os filhos. Elas só não tem dinheiro e informação. Nesse caso, basta organizar programas que ofereçam informação para os pais e escolas de boa qualidade mantidas com dinheiro público. Crianças submetidas a um ambiente marcado por doenças mentais, drogas ou relacionamentos violentos constituem um problema bem mais complexo. A ciência tem mostrado que o impacto do estresse nessa fase é tão grave que aumenta o risco de hipertensão, diabete e cardiopatias na idade adulta. Naturalmente, o cérebro é o principal afetado com danos comprovados em diversos circuitos. Educadores e - na medida do possível, os pais - precisam identificar com precisão qual é o fator de estresse e tentar criar um espaço de segurança ao redor da criança. Precisarão ensinar a ela técnicas para lidar com as situações negativas a que está submetida, minimizando os danos. Sem isso, prover os estímulos tradicionais é insuficiente. Não serão eficazes para corrigir os prejuízos já sofridos na afetividade e na cognição.
O que
diferencia programas de sucesso de iniciativas ineficazes?
O principal fator determinante para o sucesso de um programa
é o treinamento adequado dos educadores que vão conduzi-lo. Há uma tentação de
pagar pouco para esses profissionais. Mas é uma economia ilusória, pois diminui
a qualificação e o comprometimento de quem você contrata. O resultado que você
consegue por cada dólar investido cai bastante. Qualquer administrador de
empresa sabe que não compensa. E a qualificação é tanto mais necessária quanto
maiores são os dramas enfrentados pelas crianças. O número de adultos
necessários ao lado das crianças é também maior quanto mais novas elas são.
Quinze crianças de três anos para um único adulto, por exemplo, é uma situação
enlouquecedora. Além disso, um único programa aplicado para toda a população
costuma ter resultados ruins. É preciso conceber diferentes programas que
correspondam às necessidades específicas de cada grupo. Para a maioria das
famílias carentes, de fato, bastará prover informações para os pais, que muitas
vezes não tem qualquer escolaridade, e os ajudar a contribuir para a educação
dos filhos. Os pais continuam sendo os atores mais importantes na educação dos
filhos. Programas que conseguem engajá-los na formação das crianças apresentam
taxas de sucesso muito maiores. Mas são necessário programas especiais para
grupos de risco.
Qual
deve ser o foco da educação nessa fase da formação?
O estímulo do uso da linguagem, conversando muito com as
crianças, lendo para elas. Só assim elas conseguem criar sua própria linguagem.
As aptidões nessa área são um excelente preditor de sucesso acadêmico no
futuro.
Como medir o
progresso das crianças no início da infância?
Por um lado, é muito fácil. Há protocolos científicos bem
estabelecidos que conseguem avaliar as aptidões desenvolvidas desde cedo. Até
por recém-nascidos. Testes, por exemplo, que avaliam a resposta a estímulos
visuais com base no movimento dos olhos da criança. A dificuldade não está aí,
mas na imensa variabilidade do ritmo de desenvolvimento de uma criança para
outra. Por isso, precisamos de pessoal qualificado para interpretar os
resultados dos testes tendo em conta esta variabilidade. Sem isso, torna-se
impossível identificar com precisão se os métodos pedagógicos estão produzindo
resultados adequados e tomar decisões racionais baseadas em evidência.
Consequentemente , o dinheiro investido pode estar escoando
pelo ralo.
Como
compensar mais tarde deficiências no processo formativo da primeira infância?
Quando a criança nasce, já tem quase todas as células do
cérebro que a acompanharão durante a vida. Mas faltam ainda os circuitos e
conexões que ligam os neurônios. Na primeira infância, essas conexões ocorrem
de uma forma muito rápida. Além dos fatores genéticos, o principal determinante
são as experiências que a criança vivencia. Nos primeiros dois anos de vida, o
ritmo de ligações alcança 700 conexões por segundo. É como a construção
progressiva de uma casa. As primeiras conexões são o fundamento, as seguintes
são as paredes, depois o telhado... Os circuitos de maior complexidade dependem
dos anteriores, mais elementares. Naturalmente, o cérebro não perde a
capacidade de compensar deficiências e nunca é tarde demais para desistir. Mas
o resultado fica aquém quando comparado com um desenvolvimento adequado e o
custo torna-se muito maior.
Sem dúvida alguma. Antes de todas essas evidências
científicas, um político poderia defender que não valeria a pena argumentando
que a criança não aproveitaria a formação recebida nesta fase. Agora, um
discurso assim não vale mais. Precisamos tomar a decisão política de priorizar
a primeira infância. O Brasil é um País que está crescendo economicamente mas
ainda sofre com uma distribuição de renda muito desigual. Tem uma necessidade
enorme de capital humano. Devemos compreender de uma vez por todas que crianças
que nasceram em uma família pobre não estão necessariamente condenadas a um
subdesenvolvimento cognitivo. Não precisa ser assim. E o dinheiro investido na
primeira infância apresenta a melhor relação custo benefício de todos os
investimentos feitos em
educação. A segunda decisão política a ser tomada é
reconhecer que, para grupos restritos da população, estímulo educacional não é
suficiente. Para famílias em situações de maior vulnerabilidade, são
necessários programas para diminuir e compensar os fatores de estresse na
educação das crianças. A sociedade deve perceber que o investimento na primeira
infância compensa. Além de aumentar, no futuro, a população economicamente
ativa diminui muito o número de pessoas que vão parar nas prisões. Há estudos
que comprovam isso.
Como
convencer os gestores públicos de que vale a pena tomar essas decisões?
Sem dúvida, não é fácil. Investimentos em educação na
primeira infância são sementes que você lança e seus filhos e netos colherão
depois. É necessário um sentido de legado que falta a muitos políticos
preocupados com seu próprio desempenho na próxima eleição. Mas precisamos
argumentar e a ciência oferece ótimos argumentos. Um famoso estudo realizado em
Michigan comparou durante quarenta anos o desempenho de pessoas pobres que
tiveram acesso à educação na primeira infância com indivíduos semelhantes mas
que não receberam o mesmo apoio. Os resultados são eloquentes. A probabilidade
de concluir o ensino médio era 20% maior no grupo que estudou na primeira
infância. O envolvimento com crimes também era significativamente mais baixo no
mesmo grupo. Economistas calcularam que para cada dólar investido na primeira
infância, nove dólares eram economizados depois. Sem dúvida, as crianças serão
mais felizes. No futuro, sua taxa de empregabilidade, por exemplo, será maior.
Contudo, precisamos perceber que a sociedade é quem lucra o maior benefício.
Fonte: Alexandre Gonçalves, de O Estado de S. Paulo
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